A pintura de Solange
Magalhães idealiza um conceito expressivo de criação
do mundo. Sua poética modifica-se ao explorar novos temas e vivências
da natureza, embora preservando traços originais do imaginário.
De tempo em tempo, as imagens trabalhadas provocam a ilusão de
tocar uma realidade virgem porque anterior ao homem e ao paraíso,
um mundo pouco provável ao pensamento. Não se pode, é
certo, supor objetivamente como teriam transcorrido os lentos processos
e acontecimentos primeiros da criação do cosmo. E sim acreditar
na sua proximidade. Senti-los a um passo ou dentro de nós. Efetivar
a sua repetição. Repercutir junto aos fenômenos desentranhados
da matéria. Seguir-lhes os desdobramentos espácio- -temporais.
Acompanhar em silêncio a sua orquestração. Reconhecer
o que há de permanente e em comum nos mitos, a sua ressonância
perene. Uma linha de forma orgânica ou corpórea, lançada
no vazio, estende-se em sinuosidades de rio e montanha. Suscita o aparecimento
de uma nova dimensão. Nela ganha aprofundamento. Assim nasceram
as suas primeiras pinturas de paisagem. Assim promete debater-se, em si
mesma, cada nova imagem em formação.
A paisagem corresponderia, na pintura, ao mundo recriado. Seria a configuração
mais abrangente, capaz de comportar incessantes mutação
e permuta dos elementos vitais. A sutil diferenciação entre
elas. “Nós e o mundo temos a mesma origem. Passamos por todos
os diferentes registros da matéria; eles fazem parte de nossa memória”,
disse a artista em 1995, no seu mais completo depoimento até o
presente. Portanto a paisagem coincide com o eterno começo do mundo;
o espaço da “luta primordial pela vida”. Simbolicamente,
ela se torna o lugar da cosmogonia, reatualizada na pintura, que faz “uma
elaboração do mundo”. Elaboração daquilo
que é observado, sentido e/ou imaginado, daí a constituir
uma “cosmogonia pessoal”. No sentido mítico-religioso,
diria Mircea Eliade, a repetição da cosmogonia (outrora
de autoria dos deuses e heróis) implica, para o homem religioso,
no que se refere ao espaço, a sua consagração.
Numa paisagem de 1979 ( pintura sobre papel), sobressai um volume escuro
e ovalado sobre a linha ondulante que separa a terra e o céu. Tem-se
de imediato a idéia de uma pedra que resume a imagem do centro
do mundo, donde sucede a descrição mítica do ovo
cósmico. Nascido das águas para ser chocado na superfície,
ele gera a Terra e o Céu, as águas inferiores e as águas
superiores: primeira das diferenciações. O ovo cósmico
simboliza todas as possibilidades de tempo e espaço a partir de
seu papel organizador do caos. Para os chineses, o caos tem forma oval,
lembram Chevalier-Gheerbrant. Também por indicarem “o poder
criador da luz”, as analogias do ovo cósmico, bem como suas
expansões recorrentes merecem ser acompanhadas ao longo da trajetória
futura de Solange. Ao aspecto mais antigo do seu simbolismo, que o tem
como germe ou origem da Terra, é possível acrescentar, poeticamente
falando, um retorno à vida, assim como e enquanto um renascimento
humano e terrestre dentro de nossa existência.
E no entanto (considerando o período dos últimos dez a doze
anos do século), sensível a tudo, ela despoja-se de tudo,
rumo à essencialização da paisagem, assim como do
gesto criador que repete a imagem do mundo, para ela recém-criado
na pintura. Não um despojamento ascético, de formas e cores,
impossível diante da riqueza iconoclástica e cênica,
que se desprende de seus efeitos, revolvendo camadas inexploradas sob
múltiplos ângulos de visão. Mas, um desprender-se
de identidades mais localizadas, embora (é irreversível)
já plenamente assimiladas. Há nesse sentido uma perda de
sentimentalismo. Antes um querer o sentimento exato do mundo. Ela o vai
abordar, primeiro como quem pisa de novo um chão esquecido. E logo,
eis o seu lirismo: reanima, em si, a prodigalidade inata da natureza.
Essa variedade de projeções e de aberturas: imagens que
conservam a sua numinosidade, vivo mistério.
Eduardo Bezerra
Cavalcanti - Recife 2001
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