Na paisagem, a vertigem
de quem se entrega a si mesmo

Pintar uma paisagem é como pintar um retrato: exige a mesma dose de emoção e método, de entrega e distanciamento. A paisagem é também um “ser”, tem sua interioridade. Como o homem, ela “sonha”, “imagina”. É certamente algo vivo, que se modifica a cada instante, em seu aspecto exterior, ao mesmo tempo que reafirma sua estrutura interna. Sofre o impacto dos acontecimentos, reage, buscando e impondo sua própria organização.
Como qualquer ser, ela não se entrega num primeiro momento; é preciso, antes, como ensina Bachelard, sonhá-la e, simultaneamente, deixar que ela sonhe conosco. Só assim, juntos, o sonhador e o sonhado se entendem. Escrevendo sobre o retrato de Guignard, o crítico Márcio Sampaio disse: “ Guignard vasculhava os porões da alma, mas geralmente só trazia de volta, para fixar na tela, as qualidades que se aproximavam das suas próprias. Mas nunca haveria de trair o modelo, impingindo-lhe caracteres falsos”. O paisagista não pode agir de outro modo, ele precisa ser fiel a si mesmo e à paisagem, mergulhar na “alma” da paisagem, para descobrir nela a solidão, que é a sua.
Porque, mais ainda que o retrato, a paisagem põe o homem em contato com o mistério. A rigor, como eu disse a propósito da última exposição de Solange Magalhães na Petite Galerie, o paisagista está sempre buscando a mesma paisagem, a que fundou todas as demais. Foi assim com Pancetti, tem sido assim com Marcier ou com Solange Magalhães. Porque esta paisagem fundadora das demais está dentro de nós, é nossa alma, nosso sonho.
Solange Magalhães vê a paisagem de outro modo: é mais sentimento que método. Seu envolvimento com a paisagem tem uma dimensão quase religiosa, o que não exclui uma relação igualmente sensual com a mesma. E é isso que faz com que Solange mostre sempre a paisagem como ela é efetivamente, mas sem negar sua própria maneira de vê-la: um certo tipo de pincelada, de angulação, etc. No Nordeste, a paisagem se estende bem rente ao chão, rasteira, com a linha do horizonte muito baixa; em Diamantina, Minas, é o impacto da montanha bem próxima (paisagem mineral, crispada), no Canadá é o Rio como um corredor escuro entre montanhas, uma viagem às entranhas da terra; no Rio de Janeiro é a onda branca e sensual, no Amazonas, a vertigem da floresta e da água. Silêncio. A paisagem, quando vivida intensamente, é uma espécie de vertigem do ser.

Frederico Morais – O Globo setembro 1983